Sobre Assis Reis

ASSIS REIS: fazer arquitetura, viver a arquitetura* 

Assis Reis durante os trabalhos no EPUCS.A história da arquitetura brasileira e, mais especificamente baiana, guarda ainda uma grande dívida com o arquiteto Assis Reis (1926-2011). Parcialmente conhecida, pontualmente citada e muitas vezes esquecida sua obra merece atenção por parte dos pesquisadores. Apesar de que o mérito de sua atuação profissional no quadro da arquitetura nacional foi destacado e reconhecido por seus pares contemporâneos, não existe até hoje nenhuma publicação específica que aborde sua vasta produção projetual e que nos ajude, justamente, a compreender e situar seu lugar nesse quadro. Sendo assim, é importante ressaltar a contribuição pioneira da dissertação do arquiteto Pedro Nery, intitulada “Assis Reis: Arquitetura, Regionalismo e Modernidade”, defendida em 2002, no PPGAU/UFBA, a qual se constitui em aporte chave para o preenchimento dessa lacuna.

O pai de Assis era piauiense e a sua mãe maranhense, mas ele nasceu em Sergipe durante a viagem da sua família para a Parnaíba, aonde iriam se fixar. Assis passou toda a sua infância e parte da sua juventude nessa cidade piauiense, lá teve seu primeiro contato com as belas artes, o desenho, a pintura e a arquitetura ao ganhar, de mãos de seu professor de topografia, o arquiteto suíço Alfred Amstein, um livro sobre Leonardo da Vinci. Naquele momento ele mesmo traçaria sua fortuna, ele se propôs ser igual ao grande arquiteto italiano, esse desejo o acompanharia até o primeiro ano da faculdade. Essa foi a razão cardinal que o levou, em 1943, a viajar ao Rio de Janeiro para poder dar continuidade aos estudos superiores sem imaginar os acasos do próprio destino. Assis queria estudar arquitetura, mas, também, tinha como opção a engenharia.

O percurso da viagem para a então capital brasileira fazia uma escala na Bahia, em Salvador. A capital baiana não só lhe causou um grande impacto desde seu olhar de topografo, “o promontório da cidade, as duas cidades numa só, o elevador Lacerda, a baía criavam um cenário único”, costumava lembrar com grande emoção. Mas, por outro lado, existia a possibilidade de se estabelecer profissionalmente, de trabalhar. Salvador passava por um momento ímpar ao iniciarem-se, nesse mesmo ano, as atividades e trabalhos do Escritório do Plano de Urbanismo da Cidade do Salvador (EPUCS) dirigido pelo engenheiro Mario Leal Ferreira. Logo após uma breve entrevista com Diógenes Rebouças, a quem lhe mostrou alguns de seus desenhos, Assis seria contratado como desenhista e topógrafo.

Os trabalhos no EPUCS, sua grande escola, caraterizados pelo convívio com profissionais de diversas áreas deu-lhe uma visão global da cidade e possibilitou-lhe estudá-la através de vários aspectos muito além dos físicos, eles ajudaram-lhe a perceber a sua “orgânica e clara arrumação” e posteriormente a “compreendê-la” através de um “olhar urbanístico”. No EPUCS ele fez grandes amizades, algumas delas se manteriam ao longo dos anos, entre elas Osano Fernandes Barbosa e Erval Moreira, com este último se reencontraria pouco antes da sua morte. Mesmo com a extinção do Escritório, no final da década de 1950, todo o aprendizado dessa experiência o acompanharia ao longo da sua formação e atuação profissional, moldando assim sua forma de “pensar a cidade”.

Assis Reis e colegas da faculdade.

 Em 1950, incentivado pelo próprio Diógenes Rebouças, Assis Reis decide iniciar o curso de Arquitetura — no antigo prédio da Escola de Belas Artes localizado na Av. Sete de Setembro, enfrente ao Relógio de São Pedro — o qual concluiria em 1957. Apesar de Assis integrar a equipe do escritório de Diógenes mesmo antes de se formar, foi a partir da conclusão do curso que se constituiu, de fato, uma parceria com o mestre que se estenderia até 1962. Esse período foi fundamental para Assis e foi marcado por tentativas de consolidação profissional e pela busca de uma arquitetura própria. Foi uma fase assinalada por tensões provocadas pela sua oposição ao ideário modernista e sua aproximação com a “reinterpretação da arquitetura colonial ou neobarroca” aplicada em projetos residenciais. Desse período data sua primeira obra, uma casa no bairro do Rio Vermelho inspirada no Pavilhão alemão na Feira Internacional de Barcelona e algumas casas elaboradas sozinho ou em parceria como as de Eduardo de Carvalho, no Morro do Ipiranga (1959) e Adriano Fernandes, na Mouraria (1960).

A obra de Assis passa então a se aproximar da denominada “arquitetura regional”. Nesse contexto, assume uma posição crítica sobre o rumo da arquitetura brasileira junto a outros arquitetos da chamada “segunda geração” os quais haviam se formado em meados da década de 1950 e cuja produção arquitetônica começava a surgir na década de 1960; entre eles podemos citar a Luiz Paulo Conde, Sérgio Magalhães, Joaquim Guedes e Miguel Pereira. Naquele momento avaliou e repensou, também, o rumo da sua própria arquitetura e elabora o projeto para o Centro Médico Albert Schweitzer (1967). Nos anos seguintes ele se incorpora à Universidade Federal da Bahia onde foi professor na graduação e pós-graduação da Faculdade de Arquitetura.

Assis Reis e Luiz Paulo Conde.

Inicia-se sua “década de experiências” que vai, segundo o próprio Assis, de 1968 a 1978 e que corresponde à produção desenvolvida entre o anteprojeto para o Pavilhão Brasileiro para a Exposição Universal em Osaka e a Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (CHESF). Foi uma fase produtiva e com certa homogeneidade projetual que o levou a se consolidar profissionalmente não só no Brasil, mas, também no estrangeiro. Assis havia encontrado uma forma de se “apropriar da modernidade”, e isto, segundo ele, consistia na “capacidade de traduzir dentro de um grau de contemporaneidade, os aspectos históricos, culturais e materiais de uma região”. Nesses anos afirmaria que a CHESF sintetizava todas as suas “vivências” e concretizava a convivência das “tecnologias da trilogia de materiais, tijolo, concreto e aço”. Outros projetos caraterísticos dessa fase foram a casa Elza Santa Izabel (1976), o Solar das Mangueiras (1976), o Solar Itaigara (1977) e o Modelo Reduzido da cidade do Salvador (realizado em duas etapas entre 1973 e 1978).

Concluída essa fase e já com prestígio consolidado, Assis arrisca-se em um campo até então por ele não enveredado. Sua participação nos Depoimentos do livro “Arquitetura Brasileira após Brasília” organizado pelo IAB-RJ foi determinante para adquirir, por um lado, relevância e confiança como teórico e crítico graças à “bagagem cultural” e prática profissional acumulada e, por outro, a “possibilidade de afirmação dos caminhos” que buscava, como afirma Pedro Nery. De fato, nos anos seguintes ele deu início à publicação de uma série de artigos em revistas especializadas com a finalidade de divulgar suas obras mais emblemáticas, sendo também convidado com recorrência para atuar como palestrante em diversos eventos de grande projeção e visibilidade nacional, a exemplo dos Congressos Brasileiros de Arquitetura. Dois artigos destacam-se desse conjunto: “Manifesto de um baiano”, publicado na revista AU, em 1986, e “Fazer arquitetura, um difícil aprendizado”, publicado na revista Projeto, também no mesmo ano.

O período que vai de meados da década de 1990 até inicio dos anos 2000 pode ser compreendido como sua fase “urbanística” dado o grande volume de projetos de requalificação para espaços públicos da cidade do Salvador, alguns deles concretizados, a exemplo dos projetos para a Praça da Sé, Praça da Inglaterra, Praça dos Veteranos, Passeio Público, Morro do Cristo, Largo dos Aflitos, Santo Antônio Além do Carmo, Soledade, Pirajá e Lapinha; mas, também, pelas assessorias e consultorias assumidas sobre temas na escala da cidade iniciadas ainda quando da sua participação no Planejamento Físico do Centro Industrial de Aratu (CIA), em 1967, a convite do arquiteto Sérgio Bernardes, e continuadas, posteriormente, como Consultor da Secretaria Municipal de Urbanismo do Rio de Janeiro no Projeto “Rio-Cidade” (1995) e no Programa “Favela-Bairro” (1996). Nesses anos ele projeta seus dois últimos projetos arquitetônicos de grande porte: o Tribunal de Justiça da Bahia (1997) e o Anexo do Tribunal de Justiça da Bahia (2003-2007).

Assis Reis durante as obras de requalificação da Praça da Inglaterra.Em meio às transformações que passava Salvador na virada do século, em especial, provocadas pela expansão avassaladora do setor imobiliário, Assis viu desaparecer muitos de seus projetos residenciais, assim como outros ícones da arquitetura moderna baiana como o Estádio Otávio Mangabeira (Fonte Nova). Este último episódio o marcou sobremaneira e ao perceber a perda dos valores da nossa cidade afirmou que Salvador se “aproximava a uma cidade desnorteada, verticalizada sem escala, precipitando-se a uma metrópole qualquer, inclassificada pela global massificação sacrificando o maior bem – as características antropo-geográficas”.

O tempo utilizado nos dois últimos projetos executados na Bahia, as casas de Itaparica (2008-2010) e de Ubaíra (2009-2010) foi compartilhado com outros dois projetos que ficaram sem concretização: o Centro de Identidade Cultural de Salvador (2009-2010) e a maquete reduzida do Recôncavo Baiano. Apesar de estes dois últimos projetos terem sido gerados décadas atrás, ele havia buscado “atualizá-los” e “adaptá-los” com a convicção da relevância dos mesmos para a valorização da cultural local, seguindo a mesma lógica do Modelo Reduzido de Salvador.

Assis costumava iniciar ou finalizar suas falas em palestras e seminários citando trechos de livros com os quais se identificava e através dos quais pretendia que os ouvintes refletissem não necessariamente sobre sua obra, mas, sobretudo, sobre a vida. Nada mais justo do que reproduzir uma das citações que ele mais recorrentemente empregava nessas ocasiões:

Não pedimos para ser seres eternos. Pedimos apenas que as coisas não percam seu significado por completo, como vem ocorrendo atualmente” (Saint Exupéry)

 

(*) José Carlos Huapaya Espinoza